Projecto MOSCA

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Biblioteca de Textos Livres: antologia

Por
António Cândido Franco
(Universidade de Évora)

 

 

A biblioteca “Textos Livres” serve de arquivo digital a um conjunto de textos e de autores seleccionados a partir dum crivo geral e aberto que designamos de libertário. Queremos com isto dizer que numa acepção lata se procurou reunir, sem grandes preocupações de limites temporais, sob o mesmo tecto, todo um conjunto muito variado de produções. A condição basilar para o reagrupamento de matéria tão díspar foi que em cada um desses elementos, em isolado, os organizadores do arquivo reconhecessem esse primeiro impulso, o do libertário, que lhes serviu de peneira geral.

Nesse sentido pode o leitor desta biblioteca encontrar textos que vão do simples poema aparentemente inofensivo, que passa por pertencer em exclusivo à História da Literatura, até ao manifesto social ou sindical, de clara e marcada intervenção política, este em geral identificado àquilo que se assume como movimento libertário ou anarquista. Também em termos temporais, pelo menos de forma ideal, não se ativeram os organizadores do arquivo a quaisquer limites definidos e menos ainda às marcas que balizam o grosso do movimento libertário organizado, da segunda metade do século XIX à primeira do século XX.

Por esse motivo pode o leitor desta biblioteca, que não é senão uma primeira aproximação daquilo que pensamos no futuro realizar, encontrar um texto de Manuel Maria Barbosa du Bocage, que viveu na segunda metade do século XVIII, e que nada teve a ver com o movimento anarquista histórico, nesse momento ainda inexistente. De qualquer modo no texto de Bocage que aqui damos a ler reconhecem os organizadores o impulso libertário que lhes serviu de critério para a organização geral dos textos.

Do mesmo modo, numa época histórica mais recente, numa altura em que o movimento anarquista já se fazia sentir, entenderam os organizadores não limitar por esse facto a sua escolha ao respectivo movimento, acreditando que noutros campos, vizinhos ou não, o impulso libertário se podia também manifestar. Exemplo disso é a espantosa acusação de Guerra Junqueiro ao rei Carlos de Bragança, de 1906, que lhe valeu um grave processo judicial, e que tendo sido proferida dentro do campo republicano tradicional, vê nela convergir toda a irreverência libertária mais destemida e característica. E o mesmo se dirá para alguns outros textos, sobretudo de cariz literário, que aqui possam surpreender o leitor mais desprevenido.

Em última visão, para sermos fiéis a este entendimento muito lato do crivo libertário, esta biblioteca de textos livres devia remontar às primeiras manifestações escritas da língua portuguesa, onde logo, na fibra satírica dos cancioneiros, se encontra plasmada uma sensibilidade social libertária. A noção que aqui se trabalha, a de libertário, é suficientemente rica e plástica, suficientemente aberta e versátil, para permitir uma perspectiva diacrónica, em profundidade, autónoma de qualquer colagem a um movimento político e social específico, particular e datado.

O modelo ideal desta biblioteca que o leitor tem diante de si é assim um modelo universal e intemporal, sem balizas cronológicas, e que remontando às origens das primeiras manifestações escritas da língua portuguesa, porque é de textos portugueses que aqui se trata, venha depois por aí fora, até ao presente, peneirando uma a uma, à luz da noção que aqui faz critério, a de libertário, as produções escritas nesta língua.

O resultado final, mesmo avassalador, por tão extenso, não deixaria de ser surpreendente. Aí se confirmaria que em todas as épocas, em todas as correntes, debaixo dos mais variados regimes de governo e submetidos às mais diversas crenças, se encontram sempre espíritos capazes de darem um passo em frente, decidido e decisivo, na acção de libertar o espírito humano das das peias que o limitam e prendem. Quem não recorda Étienne de La Boétie e o seu Discurso da Servidão Voluntária escrito em pleno século XVI? E quem diz La Boétie pode dizer Damião de Góis, como quem diz Rabelais pode dizer Gil Vicente.

De qualquer modo, a nossa selecção afasta-se, por razões práticas, em primeiro lugar de apertos de prazo, desse modelo ideal intemporal, pois, salvando o caso do texto de Bocage, e mesmo esse marcado já por um apelo de liberdade onde se vislumbra a aurora das ideias políticas modernas, todas as produções que para aqui chamamos, todas as criações que aqui agrupamos debaixo do mesmo tecto, se situam entre a segunda metade do século XIX e a segunda do século seguinte, num arco temporal que dalgum modo corresponde à vitalidade social daquilo que é a noção do libertário concretizada em movimento organizado de intervenção social.

Mais tarde, pouco a pouco, com vagar, em novas fases de trabalho, através de novos acrescentos, se irá aproximando este primeiro núcleo que ora se dá a ler, e que tomamos por embrionário, do modelo ideal, intemporal e universal, que atrás apontámos e que constitui a meta final desta biblioteca.

Antes de terminarmos, uma palavra ainda para destrinçar as duas partes que em substância constituem o que agora se põe à disposição do leitor. Em primeiro lugar, aquela parcela de textos que, mesmo em período de intervenção específica, recolhemos à margem de qualquer movimento organizado. É o caso do texto de Guerra Junqueiro, já dado como exemplo do critério amplo e aberto, não faccioso, que aqui seguimos. E o mesmo se poderá dizer para textos de Ângelo de Lima, de Eugénio de Castro ou de Fernando Pessoa. Depois, de seguida, e por último, a parcela de textos que corresponde ao movimento que tentou organizadamente intervir na sociedade a partir da noção que aqui nos serve de critério.

Havendo coincidência prática, ressalvando é claro o caso de Bocage, entre as marcas cronológicas que balizam os nossos textos e autores e o da intervenção libertária organizada, que teve o seu apogeu entre as duas derradeiras décadas do século XIX e as duas primeiras do século seguinte, natural se tornou que uma parte substancial desta biblioteca desse voz e visibilidade aos protagonistas dessa intervenção, tornando-se em primeira fase um repositório digital da sua memória centenária. Para tanto deve o leitor saber que a fonte a que recorremos nesse caso foi o Arquivo Histórico-Social, depositado desde 1980 na Biblioteca Nacional de Lisboa, e que constitui porventura o mais precioso acervo escrito e de imagens que existe em Portugal sobre a história do movimento operário na primeira República e em simultâneo sobre as ideias libertárias que o inspiraram.

 

 

7 de Julho de 2012